Sombra Fútil Chamada Gente

22-01-2023
“O que há em mim é sobretudo cansaço —
Não disto nem daquilo,
Nem sequer de tudo ou de nada:
Cansaço assim mesmo, ele mesmo,
Cansaço.” — Álvaro de Campos 
Quando começaram as aulas sobre Fernando Pessoa, dizia com o peito cheio que não gostava da sua poesia, quezilava a sua linguagem hermética diante da professora, esbravejava a todos que as suas metáforas eram incompreensíveis. Contudo, derrepente, absolutamente tudo mudou. Conforme as aulas foram passando, a professora guiava-nos pela “constelação pessoana” e eu, cada vez mais, via-me em Pessoa. A dor de pensar, o fingimento artístico, o tédio, o niilismo, o cansaço, a nostalgia da infância! Quando me dei conta, já era Pessoa. Não me transformara nele, não! Eu descobrira, que na verdade, sempre fui como ele.

Quantas vezes, sozinho na minha cama, pouco antes de dormir, chorava feito criança relembrando-me “O tempo em que festejavam o dia dos meus anos”. Lembrando-me do doce e terno colo da minha mãe, da minha irmã tão meiga e gentil, do meu irmãozinho, do meu padrasto que me fora pai… Pedia a D-us, então, que me fizesse voltar para lá “por uma viagem metafísica e carnal”, quando era menino e “tinha a doce saúde de não perceber coisa nenhuma”. E, afinal, percebendo a impossibilidade de realizar o meu desejo, via-me com “raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira”.

Então, no decorrer dos dias, percebia que em mim, só havia “sobretudo cansaço” e que todas as coisas produziam em mim cansaço.

Passei os meus dias a ser um fingidor, rascunhando os meus versos, até que finalmente percebi que, desse modo, estava quebrando a ordem do meu companheiro Campos: “Não saúdes como eu a morte em literatura!”. Entretanto, que mais eu faria? Restava-me compor “a dor que deveras sente”.

Por fim, compreendi que o ser humano é “cadáver adiado que procria” e, portanto, não há razões para continuar vivo. Porquanto, a vida é um constante sofrer, “ninguém faz falta”, “pouco te chorarão ”, melhor é dar logo cabo dela! Pensei eu: “Se queres matar-te, mata-te! [...] Ó sombra fútil que se chama gente”, afinal, “sem ti, tudo correrá sem ti”. Pensando assim, viver é postergar o sofrimento, pois marchamos todos em direção ao abismo, então levar “o óbolo ao barqueiro sombrio” é, simplesmente, adiantar serviço a Átropos.

Matosinhos - Porto
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