O Velho

04-03-2023

Era uma fatigada estrada solitária, onde, progressivamente as veredas tornavam-se mais sinuosas e estreitas. Os corvos, repousando sobre os galhos secos, corvejavam alto. O céu pesado e vazio surgia cinza e baço, mas, não sei se realmente o era. Meus olhos, cavos e cansados, lacrimejavam. As minhas pernas trêmulas arquejavam, a cada passo, sentia esvair-se as últimas fagulhas da centelha divina que alguns chamam de “espírito”.

De repente, após tanto tempo que já nem sei dizer qual, porquanto dia e noite eram sempre iguais e eu já não mais contava os dias — não sei se por não querer ou por não conseguir, sei que já não os contava —, encontrei um ressequido velho mendicante, maltrapilho, com simpáticas rugas. Estava sentado num saudoso banco de pedra. Receptiva e familiarmente convidou-me a sentar-me… fitei-o, ignorei-o e prossegui a marcha. O velho, a cofiar a anciã barba branca, gritou:
—Eh la hô, jovem!
Não lhe dei ouvidos e prossegui a marcha vagarosa e moribunda, até que, austeramente, o ancião bradou:
— O rapaz é surdo ou faz-se!?
— Hã…? Não sei…
— Ora, não sabe o quê?
— Se sou surdo ou se me faço…
— Pois, acho que te fazes…
— E eu penso que o sou…
O velho encarou-me por um longuíssimo instante e, logo, colocou a mão direita sobre os dentes inferiores e a esquerda sobre os superiores, e fez força, uma força tão grande que chegava a rasgar-lhe a carne, dilacerando-se em dois, até que se despedaçou completamente diante de mim, revelando-me a figura macabra de uma criança loira e luzídia que me disse:
— Aonde vais, senhor?
— Ainda não sei, quando lá chegar, descobrirei.
— Pois, entendo…
— E tu, o que fazes aqui?
— Penso que sou maluco.
— É, também eu…
Ele sorriu-me. Parei, dei meia volta, sentei-me ao seu lado e lá fiquei por tanto tempo que já nem sei mais, sei que já trago as roupas rotas de tanto lá repousar. Conversamos, não sei o quê, sei que conversamos. Até que um dia, o céu cinza fez-se negro e eu, tomando uma pedra, matei o miúdo e dei-o de comer aos corvos que, após cevados, devorei. Nunca mais saí daqui… já devo ter uma anosa barba alva e carquilhas agradáveis…
Quando será que aparecerá alguém por essa estrada?

Matosinhos - Porto
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