Chaves: O Sentimento Ibero-americano

27-12-2022

Quantos de nós crescemos sem uma figura materna ou paterna — quer seja por abandono, morte, negligência, etc. —? Ou qual de nós que não conheceu alguém que se viu obrigado a submeter-se a subempregos para sobreviver? Quantas vezes os nossos pais não nos pediram para dizer ao cobrador que eles não estavam em casa? Quantos de nós não tivemos um amigo com uma situação financeira um pouquinho mais favorável com vários brinquedos que gostaríamos de ter? Quantas vezes, por falta de dinheiro, não utilizamos a imaginação e a criatividade para inventar brincadeiras e jogos divertidíssimos?

Se você não se identificou com nenhuma das situações acima, então, lamento! Infelizmente (ou talvez, felizmente), você, provavelmente, não se encaixa na música do Belchior: 

“Eu sou apenas um rapaz latino americano sem dinheiro no banco, sem parentes importantes e vindo do interior [...]”

E, consequentemente, você jamais se identificará com o seriado Chaves, dado que ali temos a representação magistral da vida das classes menos favorecidas no continente ibero-americano. Representação essa, tão convincente e verdadeira que conseguiu cativar multidões do México ao Chile, passando pela nossa Mãe Gentil.

Desde já, como um seriado feito no México, sobre uma humilde vizinhança, com um número reduzido de atores (que muitas vezes interpretavam mais de um personagem), um orçamento baixíssimo, cenários simples e limitados, efeitos especiais quase nulos, figurino simples que se repetia em todos os episódios, poderia alcançar tanta popularidade e ovações da crítica? 

 Muito simples! Para além das ótimas atuações — que de tão convincentes faziam-nos crer que de fato eram outras pessoas a interpretar os mesmos personagens —, da consciência que a série tinha da sua pobreza e limitação — utilizando muitas vezes da precariedade do cenário e dos objetos (claramente falsos) para criar os seus chistes —, das ótimas piadas, do humor acessível e ingênuo — nada apelativo —, Chaves, com a sua simplicidade e humildade, é um retrato fidedigno da pobreza latinoamericana. Porquanto, como um garoto paulista poderia identificar-se com a realidade das personagens retratadas na série com tanta verosimilhança? Ou até mesmo um rapaz venezuelano, chileno, colombiano, etc.? Sensação essa que jamais experimentaríamos ao assistir algum filme americano ou europeu. Porquento, lembro-me bem quando assistia filmes americanos na televisão em pequeno e percebia a distância absurda existente entre os ambientes e realidades retratadas neles e as minhas. Impacto esse que não existia ao assistir o Chaves, afinal, parecia-me que o seriado havia sido filmado na rua da minha casa.

Por não compreenderem a genialidade da representação, alguns críticos acusam Bolaños de criar personagens planos, caricatos e sem profundidade, fórmulas prontas e repetitivas. Entretanto, este é o olhar simplista e pedante de quem não conseguiu perceber que Roberto Bolaños deu vida a verdadeiros personagens-tipo ibero-americanos, e, por isso, criamos tanta identificação e empatia com eles. Afinal, todos nós conhecemos um Quico, uma Chiquinha, um Godinez, um senhorio como o Senhor Barriga, etc.

Se assim não fosse, como o Seu Madruga seria alvo de tantas referências na nossa cultura pop? Com releituras, pinturas, reinterpretações, etc. Seu Madrugada, nada mais é do que aquele senhor que todos nós já conhecemos: vive endividado, não gosta muito de trabalhar, mas, para sobreviver ja se submeteu a diversas profissões, aquela pessoa que mesmo não sendo nosso pai, é-nos uma imagem paterna, que mesmo tendo pouco, divide com quem tem menos; aquele homem que mesmo com tão pouca instrução, deleitava todos os meninos da vizinhança com a mais refinada filosofia:

“A vingança nunca é plena, mata a alma e a envenena”

“O trabalho não é ruim. Ruim é ter que trabalhar!”

“Se quiser chegar a ser alguém, que devore os livros!”

A temática da série, bem objetiva e evidente, encontra-se num pequeno excerto do episódio “O Despejo do Seu Madruga”. Nele, ficamos sabendo como Chaves, Chiquinha e Seu Madruga se conheceram. Basicamente, um dia, quando Seu Madruga, no pátio da vila, se preparava para tirar uma fotografia à sua filha, Chaves — menor do que já é — aparece e põem-se diante da menina. Seu Madruga irrita-se e manda-o sair da frente. O menino, entretanto, mantém-se hirto, imóvel e mudo. Seu Madruga colérico questiona-o, perguntando-lhe o que o trás ali. O menino, prontamente, responde-o, com a resposta mais sincera, genuína, inesperada e dura de toda a série: “Fome”. Seu Madruga, impressionado e desconcertado, questiona-o se ele gostaria de um sanduíche de presunto, obviamente, o rapaz responde-o afirmativamente com entusiasmo . Seu Madruga, então, quebrando a 4ª parede, olha o telespectador e interpela-o, dizendo-lhe: “E agora, onde vou arranjar um sanduíche de presunto?”.

Chaves não é só um seriado sobre a pobreza latinoamericana, é sobre como cada personagem-tipo lida com ela. Uns negando-a, alguns com esperteza (tal qual João Grilo no Auto da Compadecida), outros ignorando-a. Mas, de todos, O Mestre é o Chaves, o modelo a ser seguido. Pois, mesmo sendo o mais pobre, vulnerável, humilhado e agredido, é o mais feliz, simples, ingênuo e verdadeiro, provando-nos que a felicidade está a disposição de todos e, sobretudo, em nós mesmos. Uma vez que não tendo uma única propriedade era o único verdadeiramente livre faz de Chaves o maior personagem cínico que já viveu no Novo Mundo — aliás, coincidentemente (ou não) também vivia num barril.

Chaves é a personificação do ser ibero-americano ideal que, apesar da pobreza,; abandono familiar; condições desfavoráveis; agressões; ofensas; consegue transcender e atingir a singela e genuína alegria. A mensagem, é clara, cuja definição encontra-se na máxima do grande filósofo mexicano, Seu Madruga:

“Posso não ter um centavo no bolso, mas tenho um sorriso no rosto e isso vale mais que todo dinheiro do mundo.”


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