Boa noite, Joaquim
14-02-2023

Boa noite, meu caro Joaquim Mendes
Escrevo-te esta epístola em mangas de camisa às 03h da manhã. Sinto a pena a escorregar pelas mãos trêmulas e suadas. Não conseguiria esperar até a aurora para dizer-lho.
Após um pacato e maçante dia frio enfiado em minha quinta na Maia, resolvi fazer um passeio noturno pelo Porto.
Ordenei ao Simão, meu criado cá, que mandasse os jornaleiros apearem a minha égua favorita (aquela, a negra, que me querias comprar).
Vesti-me; pus umas grossas luvas de camurça e coloquei o chapéu coco que me deste natal passado, em tua casa de Vila Real.
Montei-a e fui a trote médio penumbra adentro.
Os lúgubres candeeiros iluminavam as solitárias ruas da capital nortenha. O vento açoitava-me a face desabrigada. O cheiro frio e úmido da esfalfada cidade enchia-me as narinas. Todas as ociosas janelas burguesas estavam sonolentamente cerradas.
Até que, chegando próximo à praça 24 de agosto avistei uma acanhada fenestra entre-aberta de onde brilhava a tímida chama de uma vela.
Ao fitá-la com mais calma e atenção, percebi a semidéia figura que escrevinhava com gestos lânguidos e cheios de graça. Parei, repentinamente, hirto e mudo e ali permaneci algum tempo — não sei quanto ao certo — a contemplá-la.
Contudo, a alva mulher, quando me mirou, trancou, assustada, rapidamente a janela.
Maldição! Volvi logo a galopar, sem cessar imaginá-la.
Não sei, homem! Deves estar a gargalhar e a chamar-me romântico! Romântico, não, Joaquim! Humano, apenas humano! Nada há mais realista do que se assumir humano.
Atenciosamente, o teu velho amigo, Ferdinando de Magalhães.
P.S. Já perguntei ao Simão se conhecia o dono do velho palacete e, aparentemente, a rapariga é filha derradeira da V. Ex.ª deputado Pedro Bacamartes.