Até Que a Morte nos Separe

18-02-2023
Assim, eles já não são dois, mas sim uma só carne. Portanto, o que Deus uniu, ninguém separe” — Mateus 19:6

 

A noiva entrou na igreja. Era uma imensa cátedra gótica de longínqua data, com sombrias torres pontiagudas e esguias, onde gárgulas funebremente contemplavam a prometida que chegara. A sua nave possuía o formato doloroso da cruz de Cristo. Grandes e sombrios vitrais assomavam as paredes, representando as cenas da Paixão de Nosso Senhor. Ao fundo, sobre o escuro altar de contornos dourados, colgado sobre o rude madeiro, vê-se a triste imagem do Filho de D-us com a mirrada face a verter sangue.
A noiva pôs-se a marchar lentamente em direção ao seu prometido. O seu rosto lívido como de um cadáver brilhava fulgurosamente. As suas mãos desesperadamente trêmulas seguravam o pesado buquê de rosas tão vermelhas qual sangue. Os convivas, ao verem-na caminhar vagarosamente, puseram-se em pé e fitavam-na silentes como num cortejo fúnebre. Imediatamente, o coro entoou um elegíaco e familiar réquiem de Mozart.
Os seus olhinhos miravam fixamente a pungente figura central do Filho do Homem dependurado na cruz. 
Chegara ao altar. O noivo, ali posto qual árvore, abriu a boca escancarada, cheia de dentes, como se a quisesse babosamente tragar. Ele vestia-se inteiramente de preto. Era uma figura gorda, nédia e sebenta. 
Entre os dois, inquisitorialmente, encontrava-se o esquelético e abatido pároco, com graves e cavas olheiras. 
Ao vê-la diante de si, o nóbio grunhiu-lhe:
— Tu estás tão suculenta, rapariga! Ainda hoje serás minha… — e dizia-o com um guloso olhar lascivo de besta selvagem.
A noiva respondeu-o, languidamente, a tartamudear:
— Pois, serei…
O padre, então, começou a demorada cerimônia nupcial com uma devagar e sentencial oração.
Após a morosa liturgia, o cura anunciou, pausadamente os votos:
— Eglom de Oliveira aceita a senhorita Maria Duarte como sua legítima esposa na saúde e na doença, na alegria e na tristeza, até que a morte vos separe?
Rápido e libidinosamente o graxo noivo guinchou:
— Sim! 
— E tu, senhorita Maria Duarte, aceitas o Sr. Eglom de Oliveira como o seu legítimo esposo na saúde e na doença, na alegria e na tristeza, até que a morte vos separe?
O sineiro badalou à meia-noite. Os corvos que dormiam sonolentamente sobre as torres da igreja, debandaram assustados a corvejar. Houve, então, prolongado silêncio na velha catedral. Até que a noiva lhe balbuciou, cabisbaixa:
— Sim, aceito… até que a morte nos separe…
— Então, pode beijar a noiva — anunciou-lhe o padre.
Ouvindo-o, o nobre cavalheiro, com os olhos cerrados, esticou os beiços sujos e oleosos prestes a engoli-la, quando a nubente, num gesto maternal e gracioso, sacou da manga uma feminina adaga, encravando-a no peito da fera maldita.



Assim, eles já não são dois, mas sim uma só carne. Portanto, o que Deus uniu, ninguém separe” — Mateus 19:6
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