Aqueles Olhos Azuis
No seu famoso livro Viagens na Minha Terra, Almeida Garret apresenta-nos um conceito interessante: a religião dos olhos pretos. Mas o que seria isso? Bem simples: no romantismo, os novelistas e romancista geralmente optavam por criar damas com olhos claros, sobretudo, azuis e verdes. Porquanto, pessoas com os olhos mais escuros tendem a ser mais enigmáticas e misteriosas, afinal, não é possível visualizar com clareza a dilatação e contração das suas pupilas (meio pelo qual nós usualmente descobrimos o estado de espírito de alguém). Um ótimo exemplo disso encontra-se no poema "Olhos Verdes" do poeta brasileiro Gonçalves Dias, que se segue:
Como se lê num espelho,
Pude ler nos olhos seus!
Os olhos mostram a alma,
Que as ondas postas em calma
Também refletem os céus;
Entretanto, Garret é uma chistosa exceção à regra romântica, pois defende que os olhos azuis são, na realidade, enganosos e iludem o amante que neles fia. Essa ideia é melhor desenvolvida no seu poema "Olhos Negros", porquanto só é singelamente e até comicamente citada em Viagens na Minha Terra. Seguem-se os dois excertos:
"Por teus olhos negros, negros
Trago eu negro o coração,
De tanto pedir-lhe amores...
E eles a dizer que nãoE mais não quero outros olhos,
Negros, negros como são
Que os azuis dão muita esp'rança
Mas fiar-me eu neles, não.Só negros, negros os quero;
Que, em lhes chegando a paixão,
Se um dia disserem sim...
Nunca mais dizem que não."
"Os olhos e Joaninha eram verdes… não daquele verde descorado e traidor da raça felina, não daquele verde mau e destingido que não é senão azul imperfeito, não, eram verdes-verdes, puros e brilhantes como esmeraldas do mais subido qui são os mais e mais fascinantes olhos que há. Eu, que professo a religião dos olhos pretos, que nela nasci e nela espero morrer… que alguma rara vez que me deixei inclinar para a herética pravidade do olho azul, sofri o que é muito bem feito que sofra todo o renegado… eu firme e inabalável, hoje mais que nunca, nos meus princípios, sinceramente persuadido que fora deles não há salvação, eu confesso todavia que uma vez, uma única vez que vi dois dos tais olhos verdes, fiquei alucinado, senti abalar-se pelos fundamentos o meu catolicismo, fugi escandalizado de mim mesmo, e fui retemperar minha fé vacilante, na contemplação das eternas verdades, que só e unicamente se encontram aonde está toda a fé e toda a crença… nuns olhos sinceros e lealmente pretos."
Eu, assim como Garret, também sou adepto da religião dos olhos pretos, apesar dos olhos azuis (os verdes não!) encantarem-me e seduzirem-me profundamente! Isso acontece, pois, nunca fui iludido pelos olhos negros (ou castanhos escuros) de alguma dama. Entretanto, já fui, uma vez, ludibriado pelos olhos azuis de uma garota. Dessa falsa paixão surgiu o texto que se segue:

Estávamos os dois deitados; os seus grandes e azuis olhos dardejavam os meus. Revelavam-me todos os misterios do seu coração; dilatavam, retraíam, as vezes desviavam-se do meu olhar. Que linda visão! Eis que ofegava, apertava-me contra o seu corpo quente; fazia-me sentir o seu cálido hálito; invocava o meu nome, pedindo-me para ser amada e satisfeita. Aquela silhueta masculina não era capaz de esconder-me o ser feminino latente aos demais admiradores. Sentia o seu seio arfar. Ela cerrou os olhos, então, logo uni os nossos lábios num longo e suculento beijo que parecia entrelaçar as nossas almas, selando-as num amor eterno. E, progressivamente, ao ouvir a minha doce e sibilante voz de barítono, aqueles enormes olhos pareciam ligar-se aos meus.