Análise literária da Abertura de Memórias Póstumas de Brás Cubas

25-08-2024

Análise da abertura de Memórias Póstumas de Brás Cubas: seu impacto para a compreensão global da obra

Fabiano Gimenez Junior[1]

Resumo

O presente artigo propõe-se a analisar, por meio do método proposto por Evaristo Correa Calderón e Fernando Lázaro Carreter, a abertura de Memórias Póstumas de Brás de Cubas de Machado de Assis. Deste modo, presto-me a averiguar o seu impacto para a análise global da obra. Como uma das conclusões, posso constatar que o introito do livro se revela um micromodelo de toda a obra e do caráter excêntrico do seu narrador-autor.

Palavras-chave: abertura; ironia; realismo; Machado de Assis.

Abstract

This article proposes to be analyzed, through the method proposed by Evaristo Correa Calderón and Fernando Lázaro Carreter in their work Cómo se comenta um texto literario, opening of the Memórias Póstumas de Brás Cubas by Machado de Assis. In this way, I lend myself to ascertain its impact for the overall analysis of the work. As one of the things, I can see that the introit of the book turns out to be a micromodel of the entire work and of the eccentric character of its narrator-author.

Keywords: opening, irony, realism, Machado de Assis.

1. Introdução

Terry Eagleton em seu livro Como Ler Literatura (2021), chama-nos a atenção para a relevância da análise das aberturas literárias e do seu impacto na compreensão global das obras ficcionais. Instigado por esta demonstração, decidimos revisitar uma das mais aclamadas e bem-conceituadas produções literárias do Brasil, considerada por muitos a magnus opus de seu autor: Memórias Póstumas de Brás Cubas, visando captar a sua implicação na leitura integral do livro.

Para lograr tal objetivo, localizaremos o excerto dentro do seu respectivo capítulo, livro e na obra machadiana, definindo o seu gênero literário e subgênero. Em seguida, definiremos o tema do texto, assim como o seu argumento. Depois, delimitaremos a estrutura interna do trecho. Após essa fase, dar-se-á a análise textual, de fato, subdividida de acordo com a estrutura interna fixada anteriormente.[2]

Ademais, para a análise literária, especificamente, atentar-se-á ao tom da passagem, o posicionamento do narrador diante daquilo que nos apresenta, além da forma como a sintaxe e a gramática são utilizadas, possíveis ambiguidades e contradições, enfim, toda a matéria formal e em como ela afeta o conteúdo do texto.

2. O Texto

Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento. Duas considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a segunda é que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo. Moisés, que também contou a sua morte, não a pôs no introito, mas no cabo: diferença radical entre este livro e o Pentateuco. (Machado de Assis, 2009, p. 9)

3. Localização e Gênero Narrativo

O texto que comentaremos é um excerto do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas de Machado de Assis em 1881 pela Tipografia Nacional. Ademais, esse romance pertence ao subgênero "memórias".

Memórias Póstumas de Brás Cubas é um dos maiores romances da literatura brasileira, que marca a transição da obra de Machado de Assis do romantismo ao realismo pessimista e psicológico. A notoriedade da obra deve-se as suas inovações estéticas, narrativas e estilísticas, assim como o seu "estilo ébrio", alheio a linearidade temporal dos episódios narrados, a sua ironia, o seu humor refinado, a sua visão pessimista e niilista frente a existência e a sua sondagem psicológica das personagens.

O excerto a ser analisado pertence ao preâmbulo da obra, mais precisamente, o primeiro parágrafo do capítulo 1, "Óbito do autor". Nele, o narrador defunto relata-nos a sua morte e cortejo fúnebre, enunciando-nos os convivas presentes e a causa da sua morte.

4. Assunto

O defunto autor expõe-nos a sua dúvida: começar o relato pela sua morte ou pelo seu nascimento? Em seguida, explica-nos as razões que o levaram a, invulgarmente, iniciar a sua narração pelo seu falecimento: 1ª) Pois não é um autor que morreu, mas um morto autor; 2ª) pela originalidade da decisão, opondo-se ao exemplo de Moisés.

5. Tema

A hesitação do narrador defunto em principiar a sua história pelo seu nascimento, em detrimento do seu óbito.

6. Estrutura

Este texto pode ser dividido em duas partes lógicas: 1ª) Hesitação de por onde haveria de começar as suas memórias (l. 1-3); 2ª) Justificações por ter optado por iniciar as memórias pelos seu falecimento (l. 3-7), onde constam duas subpartes: 2) A) o fato ser um "defunto autor" (l. 4-5) e 2) B) a originalidade causada por esta escolha (l. 5-7).

7. Análise

7.1 Parte A

O introito anuncia aquela que será a principal característica da obra: divagações filosóficas e digressões do narrador-autor.

O tom coloquial, irônico e íntimo evidencia-se por meio da escolha do narrador autodiegético (vide a flexão verbal do primeiro verso da l. 1), que, além disso, gera para a verossimilhança ao relato (essencial para o gênero memórias). Ademais, o narrador em 1.ª pessoa aproxima o leitor do narrador, como afirma Massaud Moíses:

"O impacto resultante, porque direto e sutil, confere verdade à narrativa, em resultado de ser o herói quem a transmite: é fácil compreender o fascínio da comunicação imediata entre narrador e leitor, quando nos afastamos da ficção e voltamos à vida real. Os dramas adquirem eloquente forte quando são narrados pelos seus protagonistas: se um terceiro os relata, alguma coisa da sua vivacidade se perde ou se atenua". (Moisés, 2007, p. 69).

Não obstante, neste relato, somos apresentados aos pensamentos da personagem, como em: "Duas considerações me levaram a adotar diferente método" (l. 3-4), algo que nos torna ainda mais chegados à sua figura.

Ademais, vale ressaltar que a história não principia com uma narração, como noutras outras obras literárias consagradas, ou com uma descrição, tal qual n`Os Maias, mas sim, ex abrupto, com uma digressão do narrador (forma discursiva que se revelará predominante no livro e uma das principais características da obra machadiana). Assim, é-nos demonstrado, desde o início, que a narração terá relevância secundária (haja visto que, na obra, a narrativa é suspendida durante muitos capítulos para dar lugar a reflexões e divagações filosóficas do autor defunto).

Além disso, o narrador demonstra-se pitoresco e excêntrico, pois admite já estar morto[3] (l. 2). Estas suas qualidades serão fundamentais para cativar o leitor, porquanto, como afirma o crítico literário Terry Eagleton (2021, p. 74):"O problema é que, se as personagens normais têm todas as virtudes, as figuras extravagantes têm toda a vivacidade.".

7.2 Parte B

Ao justificar-nos a escolha feita, o narrador dá-nos dois argumentos. No primeiro, por meio de um engenhoso jogo de palavras, explica-nos que não é um "autor defunto", (l. 4), porém, um "defunto autor". Deste modo, a frase com o substantivo "autor" acompanhado de seu respectivo adjetivo "defunto", tem a sua ordem invertida. Assim, o adjetivo "defunto" passa a qualidade de substantivo, e o substantivo "autor" à adjetivo. Na prática, esta simples inversão gera uma importante mudança semântica, porquanto, o narrador não é alguém que escrevia obras em vida e faleceu, todavia, um falecido que, após a sua morte, se tornou escritor.

O fato de ser um narrador defunto também concede a personagem a capacidade de julgar livremente os seus atos e pensamentos enquanto vivo, como ele mesmo afirma no capítulo XXIV: "Talvez espante ao leitor a franqueza com que lhe exponho e realço a minha mediocridade; advirta que a franqueza é a primeira virtude de um defunto. [...] Senhores vivos, não há nada tão incomensurável como o desdém dos finados". (Machado de Assis, 2009, p. 49).

Além disso, por garbo, vaidade e originalidade, Brás Cubas opta por principiar as suas memórias pela sua morte. Essa sua falta de modéstia e humildade, somados a sua soberba, serão marcas importantes da sua narração. Elementos fundamentais para granjear a estima do leitor e envolvê-lo, como afirma Eagleton (2021, p. 74): "depois de a classe média vitoriana ter definido a normalidade como parcimônia, prudência, paciência, castidade, submissão, autodisciplina e laboriosidade, ficou claro que o diabo era muito mais divertido."

A originalidade da narração é fundamentada pela comparação com Moisés (l.6-7), que, segundo a tradição cristã, escrevera o Pentateuco, inclusive o registro de sua própria morte em Deuteronômio 34. De tal forma, o narrador põe-se, em tom jocoso e irreverente, superior ao texto bíblico. Além da soberba e vaidade já citadas, temos aqui marcas de niilismo face à religião, traço distintivo desta obra machadiana.

Considerações finais

Em síntese, a presente análise demonstra-nos que todas as principais características de Memórias Póstumas de Brás Cubas, como o niilismo, as digressões filosóficas, a importância secundária da narrativa, o "desdém dos finados", o tom coloquial e confidente, a originalidade da narrativa, a entonação soberba que revela o espírito mediano de Brás Cubas, etc., se fazem presentes nesse curtíssimo introito. De tal modo, o preâmbulo da obra revela-se um sucinto modelo de todo o livro.

Referências

Machado de Assis, J. M. (2019). Memórias Póstumas de Brás Cubas. (1a ed.)Jandira: Ciranda Cultural.

Calderon, E. C. & Carreter, F. L. (2006). Cómo se Comenta un Texto Literario (28a ed.). Madrid: Catedra.

Cunha, C., & Cintra, L. (2001). Nova Gramática do Português Contemporâneo (1a ed.). Rio de Janeiro: Nova Fronteira.

Moisés, M. (2007). A Criação Literária – Prosa I (21a ed.). São Paulo: Cultrix.

Moisés, M. (2014). Análise Literária (19a ed.) São Paulo: Cultrix.

Terry, E. (2021). Como Ler Literatura (1a ed.). Lisboa: Edições 70.


[1] Estudioso da gramática, linguística e literatura portuguesa, escritor, poeta, contista, revisor e articulista da revista artística Didascália, revisor e formatador de textos.

[2] Conforme a metodologia proposta por Calderón e Carreter (2006, p. 25).

[3] Este fato será nota prima da narrativa, com impacto fundamental para a narração que se sucederá nos capítulos seguintes da obra, como veremos mais detalhadamente na análise da Parte 2.

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